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A SEMIOSE E A DICOTOMIA NATUREZA-CULTURA

por Evani Viotti

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Não é de hoje a busca pela diluição de algumas das dicotomias traçadas pela Modernidade, como aquela que opõe natureza e cultura. As ideias do biólogo Jakob von Uexküll (1864-1944), ao buscar integrar a vida orgânica e os mundos que as espécies constroem para si, constituem um passo importante para essa dissolução. Ao elaborar sua noção de Umwelt, von Uexküll define vida como parte de um sistema semiótico. Umwelten são mundos semióticos construídos a partir daquilo que faz sentido para os membros de cada espécie. A mesma direção é assumida pelo neurobiólogo Francisco Varela (1946-2001): organismos são concebidos como sistemas complexos auto-organizados que fazem emergir signos a partir da própria criação e da manutenção da vida. Esse processo é estimulado pelo ambiente em que o organismo vive, mas não é causalmente influenciado por ele. Entretanto, é a partir dele que os organismos constroem seus mundos ao definir as configurações do ambiente que têm relevância e fazem sentido para seu processo de auto-organização, em um processo semiótico contínuo e infindável. Criam-se, assim, mundos ontologicamente distintos.

 

Ao situar a semiose no centro da própria vida, essas ideias abrem um caminho de investigação interessante: ao mesmo tempo em que atenuam a polarização entre natureza e cultura, ampliam o escopo dos estudos semióticos para além da análise das interações entre humanos. Ganham destaque as interações, consistentemente apontadas nas etnografias sobre diferentes povos, entre animais humanos e não humanos, e entre os animais e seus ambientes. A comunicação interespecífica é, em muitos casos, entendida como parte da capacidade de certos indivíduos, os xamãs, de transitar entre as espécies e de entender e falar suas línguas. Para outros povos, seres comuns podem manter comunicações interespecíficas nos sonhos em que se encontram com os espíritos dos mortos ou de outros animais. Outros povos chegam a oferecer substâncias alucinógenas a animais não humanos para que eles possam cruzar as barreiras que os separam dos humanos e, assim, se comunicar com eles. Os discursos produzidos nessas interações se valem, muitas vezes, tanto de elementos da comunicação humana quanto da dos animais, combinando-os de forma tão inovadora, que Eduardo Kohn caracteriza esses discursos como “pidgins transespecíficos”. Esse tipo de fenômeno revela que são processos semióticos que sustentam esse trânsito entre os Umwelten das diferentes espécies. A investigação desses processos deve evitar qualquer tipo de antropocentrismo, buscando entender como eles, ao mesmo tempo, determinam e são determinados pelos Umwelten das diferentes espécies, como eles aproximam esses Umwelten, e como, em última instância, eles se constituem como uma continuidade entre vida e cultura. 

 

Evani Viotti é professora do Departamento de Linguística da FFLCH-USP e coordenadora do grupo de estudos LLICC-Laboratório Linguagem, Interação, Cultura, Cognição.

 

Para esta edição, Evani nos prestigiou com esta nota escrita especialmente para a Newsletter da ABES. O espaço está aberto: convidamos vocês a submeter uma nota semiótica para nossas próximas edições.